Texto de Ismael de Araujo publicado no portal Terra: R.I.P. Michael Jackson
De hoje em diante saberemos qual Michael Jackson entrará para a história. Porque quem pensa que hoje morreu unicamente o dançarino do moonwalk, o cantor dos gritinhos adestrados ou o insano malabarista de bebês recém-nascidos em sacadas de hotel está redondamente enganado. MJ, mais do que um bizarro entre nós, é – no presente de uma retrospectiva em construção- um mosaico exato do desvario de nossa cultura midiática.
Ainda moleque, obsessivo pelas shaking legs de James Brown, o negrinho de Indiana mostrou sua virtude para o mundo à frente dos Jackson’s Five, uma boy band florida e sintonizada com o mais fino da música preta dos anos 60. No pequeno Michael estava contida toda a vontade de potência –realizada- na forma de uma inata capacidade de comunicação com a massa através do corpo e da voz. O mundo conheceu um pequeno-gigante arrebatador e elegeu nele a figura do filho preferido, perfeito e irretocável.
A trajetória de Jackson foi o primeiro reality show ao qual assistimos. Vejam o menino pretinho e pobre que apareceu na TV cantando horrores! Olha só, será que esse mocinho não deveria estar brincando de carrinho por aí ao invés de ser o novo miquinho de estimação do showbizz? E o cabaço, já perdeu? Será que ele é, será que ele é? No meio de tanta especulação, o garoto crescia e começava sua revolução com o impecável Off the wall, o primeiro da carreira solo.
Para os entendidos de música, o melhor de Michael está aí, num lado A original, dançante e swingado e um lado B cálido, apaixonado e macio. Depois, para arrebentar até com as expectativas mais delirantes, Jacko lança seu Thriller. Se para a música pop o primeiro álbum solo foi um divisor de águas, nesse segundo Michael Jackson constituiria sua estética e definiria sua herança cultural: mais do que o disco solo mais vendido, Thriller salta da sua dimensão de vinil-fenômeno para nos mostrar o artista fundamental. Ao se transformar em lobisomem, morto-vivo e os cambaus na sala de nossa casa, Jackson deixou de ser homem para virar uma metamorfose constante. Via satélite.
O monitoramento foi total: da TV em preto-e-branco às telas de LCD acompanhamos tudo até que um dia começamos a achar esquisito- cadê o nariz, por onde se esconde o cabelo pixaim, quem é o homem por trás da máscara? Mas Jackson não queria deixar de ser branco, num autorracismo imperdoável. Ele queria mesmo era ser Peter Pan, construiu para si próprio uma Terra do Nunca recheada de lhamas e algodões doces. O multimilionário do pop manipulou a mídia, ficou maior que si mesmo, ultrapassou seu métron e foi julgado em praça pública como um Capitão Gancho desvairado.
O justo título de Rei do Pop coroa um homem que cresceu dentro – e junto – do fenômeno midiático. Olhando como um todo, e para fazer justiça com sei lá que profundezas do ser humano, Michael Jackson não merece ser avaliado apenas por sua música. O espelho quebrado e retorcido no qual seu rosto se transformou foi uma tentativa- consciente ou não- de construir a eternidade da qual só um ser mitológico é capaz de provar.
Ao ser estranho -para nossa catarse e prazer-, Michael imprimiu no próprio corpo um cubismo de Picasso, uma expressividade de Francis Bacon. Se tornou uma performance ambulante, um happening constante. R.I.P., Michael, porque a vida funciona assim: de perto ninguém é normal. De repente é isso. A gente te viu, o tempo todo, de perto demais; mais do que qualquer um poderia agüentar.
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