25 de maio de 2010

Curso Groovy: apesar do preconceito, transgressão vira arte – e o saldo é positivo

Por Bianca Zanatta


Às vésperas de colocar no ar a tão esperada aula 20 do Curso Groovy de Mágicas, acho que vale parar um pouco pra conversar sobre as questões que surgiram com essa iniciativa, suas conseqüências e alguns reflexos captados no ar, feito mosquinhas verdes na nossa sopa de mandioquinha.


Leio absolutamente tudo que se escreve publicamente a respeito do nosso curso e do trabalho do Ismael. Como assessora de imprensa e responsável por toda a parte de comunicação da empresa, faço um balanço entre o que foi dito de positivo e de negativo e comemoro: os que apóiam o curso e os passos do Ismael como mágico são muito mais numerosos do que os que vão contra. O que eles têm a dizer também costuma ser mais construtivo e elaborado, enquanto os que se posicionam contra, na maior parte das vezes, optam por trazer a discussão para o subsolo da baixaria, das ofensas e dos xingamentos – geralmente num português terrível, tipo “chingamentos”, mesmo. Mas o saldo é positivo, enfim, e profissionalmente me dou por mais do que satisfeita.


Agora, como ESPOSA do figurinha – sim, pra quem não sabe, sou casada com o Ismael e mãe dos dois filhos dele (um já com 1 ano e meio, o outro ainda na barriga) -, confesso que costumo subir pelas paredes com as bobagens que leio sobre o trabalho dele e, principalmente, sobre a PESSOA dele. Liberdade de expressão é uma coisa bacana e necessária – como jornalista e gente, defendo até o osso. O problema é quando essa liberdade começa a esbarrar no privado – ou seja, naquilo que não tem NADA A VER com o trabalho da pessoa criticada – e, pior ainda, quando descamba pro preconceito e pro racismo.

O rostinho do futuro, num mundo que ainda nada em racismo, preconceito e ignorância

Sim, amigos bastards, o tal racismo de que ninguém gosta de falar e que muita gente finge estar erradicado de nossa miscigenada sociedade verde-amarela, pelo menos nos círculos mais esclarecidos. Bora falar a verdade, gente: sou loirinha, branquinha, privilegiadinha e digo com todas as letras que o preconceito racial continua presentíssimo em nossas vidas, no nosso cotidiano, no nosso local de trabalho e, infelizmente, na nossa arte.


Nesses cinco meses de curso Groovy e três anos de mágico Ismael de Araujo na TV, já li de tudo: que ele é feio, maconheiro, que se veste feito um mendigo, que fala igual malandro de rua, que a imagem dele desrespeita a filosofia do que é ser mágico. Já ouvi histórias que chegam a ser engraçadas de tão trágicas, como a de um professor de mágica que, lá no início da carreira do Ismael, disse que pra ser ilusionista ele tinha que cortar o cabelo, passar gel e botar um terninho. Só faltou sugerir uma chapinha básica, manja?


Jean-Michel Basquiat - para uns, pixador viciado; para outros, talento sensível incompreendido

Nunca pensei que fosse complexo de perseguição da minha parte ficar p**** com esse monte de comentários ignorantes e absolutamente preconceituosos, tanto no que diz respeito ao estilo de trabalho do meu marido quanto ao seu tipo físico. Mas nunca quis falar aqui sobre isso porque, até hoje, achei que fosse uma questão que pertencesse mais à nossa esfera privada, aqui no covil dos bastards Zanatta Araujo, do que um problema a ser dividido com todos vocês. Só que há males que vêm pra bem e ontem, talvez com certo atraso, encontrei o seguinte comentário no post sobre David Stone escrito pelo Ismael no nosso blog:


“Ismael, 


Você, além de mim, é o único mágico negro que conheço. E ainda por cima usa dreads. Eu, quando fazia mágicas, usava black. Meu então mestre se horrorizou quando deixei o cabelo crescer, e queria que eu fizesse um estilo "mágico do oriente", com turbante e não sei mais o quê.

Enfim, o que quero dizer com isso é que, provavelmente, o epíteto que te deram de mágico-que-mais-parece-malandro-de-rua tem tudo a ver com racismo. Tivesse você a pele clara e os cabelos lisos, podiam também te destratar, mas com outro adjetivos, certamente. É o típico racismo não declarado, mas que a gente que vive isso, sabe bem que está tudo misturado nesses discursos.

Já vivi nesse meio e sei como é racista. O meio artístico em geral é muito racista, embora pose de moderninho, e na mágica não é diferente. E há ainda o agravante que você mesmo comentou: a mágica tem esse ranço de ser classuda, tradicionalzone, o que afasta ainda mais o indivíduo negro. Então, se ver um mágico negro incomoda muita gente, como já senti na pele, um mágico negro de sucesso e bastante exposição como você, porra, isso mata os caras.

Sei que você não levantou essa bola, e pode ser que nem concorde com isso, mas eu não poderia me furtar ao comentário. Imediatamente me vi na tua pele quando li o post.

 Um abraço e muito sucesso para você,
Rafael.”

Primeiro, a esposa aqui ficou bem emocionada, confesso. Porque essa é, sim, a realidade que a gente vive todo santo dia – e tenho um orgulho danado de dizer que nossa cabeça tá sempre levantada, porque eu sou espanhola teimosa e o Ismael é bastard, oras. Mas também porque, como mãe de um lindo mulatinho loiro (“o negão mais branco que já se viu”, segundo uma amiga do Ismael), às vezes me tira o sono pensar que meu filho vai enfrentar esse tipo de sentimento no mundo em que vive. Enquanto eu enfio os dedos nos cachinhos redondo-felizes do cabelo dele e penso “cazzo, que mistura linda aconteceu aqui!”, tem muita gente já dizendo “que pena, ele vai ter ‘cabelo ruim’”. Isso me aflige, sim, porque são séculos de ignorância e isso não desaparece de uma década pra outra – só se esconde embaixo do tapete, enquanto a gente fica esperando que as pessoas parem de torcer o nariz pra dreads, tatuagens, roupas, piercings, gírias, vanguardas em geral.

A mexicana Frida Kahlo e suas telas de surrealismo sangrento

E segundo, a profissional de comunicação aqui ficou bem perplexa. O Rafael fez ressurgir em mim uma reflexão sobre o que é a arte e por que a mágica, de todas elas, é a mais RETRÓGRADA e ESTAGNADA que há. Hein, gente, por que será que nada de novo acontece no mundo mágico, enquanto Pollocks e Picassos brotam na história da pintura, Polanskis, Spielbergs e Von Triers explodem no cinema, Saramagos e Garcias Marquez despontam na literatura e poderia-ficar-aqui-até-amanhã-nessa-brincadeira-de-citações-mas-não-vou? A resposta é simples: porque o meio mágico é PRECONCEITUOSO E CARETA e NÃO EXISTE ARTE quando não há o novo, o vanguardista, o polêmico, o rebelde. Só com a técnica não se faz arte. Sem transgressão não se faz arte. Porque transgressão significa transformação – e é daí que nasce a boa arte, minha gente. Vide todos os grandes artistas da história: a grande maioria é ou foi transgressora. Elvis horrorizava a conservadora sociedade norte-americana quando apareceu com seu rebolado frenético; Marilyn fez muita “família do bem” desligar a televisão com seus assombros de sensualidade; Frida Kahlo ainda hoje inspira nojinho em uma cecetada de gente tonta por causa de suas telas cheias de esqueletos e vísceras e úteros abertos e aparelhos ortopédicos; Jean-Michel Basquiat talvez nunca tivesse passado de um pretinho injetador, cheirador e pixador de muros novaioqruinos.

Como observadora do universo mágico há três anos - e sem intenção nenhuma de me tornar eu mesma uma mágica, agradeçam a Deus! -, vejo com mais clareza ainda a alienação preguiçosa do ilusionismo, se comparado a outros movimentos artísticos. Até o funk se renova mais do que a mágica no Brasil, cacete, e isso acontece porque tem lá suas Tatis Quebra-Barraco que fazem isso mesmo: QUEBRAM O BARRACO A PAULADA. Daí o povo do morro aplaude, a mídia aplaude, os mauricinhos aplaudem, todo mundo aplaude porque no mundo da música é bem sabido que o popular, muitas vezes, traz as qualidades necessárias à ruptura, à mudança e à inovação.

Marilyn Monroe, que não entrou em muita casa americana por ser 'despudorada'

Olhem só, toquei de novo na questão delicadinha: o popular, no Brasil, é negro. E muitos mágicos lançam farpas invejosas no orkut, nos fóruns de discussão, no youtube e no twitter: “por que esse escroto (no caso, o Ismael) tá na TV e nós não?”. Por que será, colegas? Por que será que o Ismael é o primeiro mágico brasileiro a ter um quadro próprio na TV aberta nacional por 3 anos consecutivos, em diferentes emissoras? Por que será que o Ismael já foi parar duas vezes no sofazinho do Jô Soares em menos de dois anos? POR QUÊÊÊÊ???? A loirinha-branquinha-privilegiadinha aqui responde: porque ele é NEGRO, OUSADO, DIFERENTE, INOVADOR, VANGUARDISTA E LEVA SEU ESTILO E SUAS ORIGENS ATÉ AS ÚLTIMAS CONSEQUÊNCIAS. E o povo brasileiro, meus caros, se identifica com isso. A arte, meus caros, se identifica com isso. Só o meio mágico que não.


No ano passado fui dramaturga de “O Mentiroso”, uma peça idealizada pelo Ismael, que misturava mágica, teatro e música erudita. A crítica especializada adorou, o povo “das artes” ovacionou, o público compareceu em massa. Agora perguntem quantos mágicos foram assistir. Contando nos dedos, uns oito. E como pode, num universo artístico, surgir a proposta de uma aplicação tão inédita da linguagem artística que é objeto de trabalho do tal universo e só OITO representantes da categoria irem conferir? Fica a interrogação pra quem quiser botar a mão na consciência e REFLETIR (afinal, reflexão também faz parte da arte).

ElvisPriesley e o rebolado que horrorizou os conservadores nos EUA e no mundo


Last, but not least, volto ao comentário do amigo-mágico-black-power-roots-bastard Rafael (que, além de tudo, escreve num português delicioso e perfeito – técnica que me encanta tanto quanto um bom double lift): a mágica no Brasil de hoje é como o cinema nos anos 20. O primeiro filme falado da história (“The Jazz Singer”, 1927) foi estrelado pelo ator Al Jolson – um branco pintado de preto. A pintura é grotesca, com uma beiça caricatural imitando os lábios grossos dos cantores negros de jazz. Mas na época era assim – negros não faziam filmes, não ocupavam os mesmos lugares nos ônibus que os brancos, não usavam os mesmos elevadores. “O elevador é quase um templo”, diz o mestre sambista Jorge Aragão. Pois bem, Rafael, a galera da mágica no Brasil desce até mais baixo. Não reserva lugares em ônibus nem cede elevadores, mesmo que separados. Ser mágico negro, rasta, tatuado e roots, por aqui, é DESELEGANTE. E deselegante é um termo cheio de glamourzinho pra designar, de forma racista e preconceituosa, uma intolerância com o novo, o diferente e, SIM, com as origens negras que o artista mágico opta por defender como estética e ideologia.


Obrigada, Rafael, por abrir publicamente sua experiência de vida e nos dar a certeza, mais uma vez, de que não estamos sozinhos no que acreditamos ser a forma certa de fazer arte – e encarar a vida. E obrigada, Ismael – o cliente que me enche de desafios, o marido que me enche de orgulho e o pai dos meus filhos, donos dos cachinhos redondo-felizes mais bonitos desse mundo -, por sua cor, seus dreads, suas roupas, suas tatuagens, seu jeito de falar e sua ousadia artística de sempre. Isso é um prato cheio pra qualquer assessora de imprensa – e pra qualquer mulher.


11 comentários:

Unknown disse...

Olá, Bianca!
Estou aprendendo mágica a mais ou menos seis meses e nesse meio tempo o que me atraiu no Ismael foi o jeito "maloqueiro" dele. completamente diferente do que vemos.
Uma mágica com cara nova e que me agrada e muito. Nenhum mágico engomadinho e de cabelo lambido me atraiu a atenção tanto como o Ismael.
Salve Ismá, meu cumpádi. Mostra pra esses caras como se faz mágica.

Um super abraço.

Marcel disse...

Bi, esse curso não poderia acabar sem essa enfiada de dedo na ferida! Estamos aqui pra incomodar, certo?
Me incomodo, e muito, com essa hipocrisia escrota de fingir que não tá rolando nada. Essa babaquice de julgar a competência e o caracter das pessoas pelo que elas vestem, usam ou gostam.
Eu me orgulho de vocês, meus amigos. E torço mais e mais pro sucesso do meu amigo, seu marido, para que esse bando de cretino preconceituoso aprenda, de uma vez por todas, que o que faz o sucesso é COMPETÊNCIA, DEDICAÇÃO E CARISMA.
O resto, é dor de cotovelo!

Bjo

Allan disse...

Excelente texto.

Parabenizo você Bianca e ao nosso grande mestre Isma.

Que a mágica esteja sempre presente em nossas vidas.

Ilton disse...

Mágica é arte. E o que o Ismael faz é muito além disso. Infelizmente crescemos enraizados de estigmas de preconceituosos. Ismael como em toda área de trabalho o importante é vc ter o seu diferencial, um destaque pessoal e profissional. Você mostra isso sendo um ilusionista inovador, com um diálogo humorístico e envolvente, um visual único e uma participação direta com seus fãs.

Te agradeço por todas as aulas disponibilizadas ao longo desses 5 meses. Através do seu blog eu me encantei pela magia e hoje quero colocar o sorriso no rosto de muitas crianças que ficam atônitas quando realizo um efeito. Pude adquirir seus produtos e hoje tenho-os como livros e Dvd´s de cabeceira. Obrigado mais uma vez e muito sucesso hoje e sempre nessa sua bela carreira como Mágico/Ilusionista/Prestidigitador enfim...

Abraços.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Bi, literalmente " do kralho " esse post!.Infelizmente, tudo que vc citou de preconceito é verdade!.Já vieram criticar o Ismael 1 milhao de vezes por ele ser negão porra loka!.E TODAS as vezes qm critica ele é um mágico (keh dize, babaca que acha q é mágico) e sempre com o msm argumento, q ele é mais ator do q mágico!.+ porra, o q faz a mágica realmente é a apresentação, esse é o diferencial de cada mágico e principalmente do Ismael!.Vc saber fazer um movimento perfeito não ker dizer q vc é mágico!.Por isso, sempre bato na msm tecla: a mágica ocorre na apresentação e não nos movimentos!.E a verdadeira mágica, é viver num país onde ser negro, ser bastard e ser roots incomoda mta gente!

Isma, parabéns pelo curso, pela sua coragem e pelo seu estilo!

Bi, parabéns pelo post e por ser uma das pessoas mais importantes e incentivadoras do CURSO GROOVY PARA BASTARDS ONLYYYYY!!!

Bjo!

Bianca Zanatta disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bianca Zanatta disse...

Pessoal, liguei há pouco para o Ismael, que está participando do Festival Mundial do Circo em BH, e li os comentários deixados aqui. A gente agradece não só a participação, como o puta carinho que vocês têm por esse trabalho e pela mágica. Podem ter certeza de que os projetos vão continuar - cada vez mais ousados, divertidos e inovadores, doa a quem doer. Afinal, a vida é uma só. Dá pra passar por ela sem incomodar ninguém ou dá pra passar por ela sendo GROOVY MAGIC FUCKIN' MARIO BROTHERS BASTARD! Abraços nossos!

† Otávio Mota ♣ disse...

É difícil ainda ter que lidar com a hipocresia e cruzadas moralistas a respeito de padronizações artisticas... o que Ismael faz é para poucos e são estes poucos que fazem ainda a arte da mágica valer a pena, uma excelente abordagem sem comentários, parabéns Bianca.
Ismael, tu talvez não tenha ideia da sua contribuição para Arte. Obrigado.
Mais uma vez um texto digno bastard !
au revoir :D

Rafael Cesar disse...

Pois é. Como disse o Chico César: "respeitem meus cabelos, brancos!"

(Atentem para a vírgula, bastards!)

Jader disse...

Não ha o que dizer sobre seu texo somente nos e quem se relaciona com nosco ve todo o preconceito que este pais insiste em negar.
ass:Jader(negro,crente e comunista)
obs;desculpe pelo portugues